Câmara analisa uso de eletrochoque em adolescentes; especialista critica
Na contramão da investigação do uso de armas de eletrochoque em
presídios de Goiás, que está em curso pelo Ministério Público do estado,
tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 6433/16, que
autoriza os agentes responsáveis pela execução de medidas
socioeducativas aplicadas a adolescentes a utilizarem armas de
eletrochoque em situações específicas.
O MP goiano abriu a investigação após denúncia de que agentes do Grupo de Operações Penitenciárias (Gope) foram flagrados usando armas de eletrochoque contra detentos que não ofereciam resistência. Dois servidores foram afastados ontem (30).
Responsável
pelo inquérito, o promotor Marcelo Coutinho aponta que o uso desse tipo
de instrumento, considerado não letal, gera preocupações. “As armas
não letais foram criadas e são utilizadas para contenção de agressões
contra as pessoas e de forma a conter os presos, sem tirar a vida deles.
Mas o que a gente tem percebido é que elas têm sido utilizadas como
mecanismo de tortura”, aponta.
Já no Projeto de Lei, o
propositor, deputado Cajar Nardes (PR-RS), diz na justificativa que a
arma será utilizada para proteger internos, funcionários e terceiros e
que só será empregada em situações específicas. A Agência Brasil
procurou o deputado, mas ele não pôde dar a entrevista; a reportagem
também não conseguiu contato com as organizações indicadas por sua
assessoria.
O Projeto de Lei
O PL detalha
que a arma poderá ser utilizada contra o que chama de “interno
não-cooperativo”, mesmo quando desarmado, se ele não puder ser
imobilizado manualmente ou por meio mecânico, mas tiver que ser contido
em razão de “apreensão, captura, detenção ou custódia, se sua conduta ou
reação puser em risco a integridade física de eventual vítima sob seu
domínio, de terceiro não envolvido, do agente ou de si próprio"; de
"descontrole emocional, se sua conduta ou reação puser em risco a
integridade física própria, do agente ou de terceiro"; ou de tentativa
de suicídio.
O agente poderá valer-se da arma contra interno que
portar arma branca, “se não for conveniente seu desarme por outra forma
sem colocar em risco a integridade física de eventual vítima sob seu
domínio, de terceiro não envolvido, do agente ou de si próprio”. Também
abre possibilidade de uso para “condução de interno perigoso” ou diante
de “interno não-cooperativo, portando arma de fogo”. A proposta permite,
inclusive, o uso de arma de fogo pelos agentes, como último recurso
para conter interno que estiver armado ou para custodiar “interno
perigoso”.
O projeto tramita em caráter conclusivo nas comissões de Segurança
Pública e Combate ao Crime Organizado; de Seguridade Social e Família; e
de Constituição, Justiça e de Cidadania. Isso significa que é
dispensada sua apreciação, em plenário, pelo conjunto dos deputados
federais.
Crítica à proposta
O perito do
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) Rafael
Barreto critica a proposta. “Não há outro país do mundo que tenha
legislado expressamente autorizando eletrochoque contra adolescente
privado de liberdade”, explica. Ele reconhece que há, nas unidades do
sistema socioeducativo, diversos registros de rebeliões e outras formas
de violência, mas discorda que essa situação se deva à falta de um
aparelho repressor mais eficaz. A característica conflitual, aponta,
está associada ao intenso confinamento dos jovens.
Conforme o
MNPCT, a média de confinamento diário em alojamentos que se assemelham a
celas é de 23 horas. No fim de semana, de 72 horas. “O mecanismo
visitou vinte unidades em doze estados e constatou que nenhuma delas
garantia atividade externa todos os dias, como os presos têm, de 3 horas
por dias. Os adolescentes, portanto, recebem um tratamento mais gravoso
do que os adultos presos”, relata.
“O eletrochoque em nada vai
coibir isso. O adolescente tem que ter esporte, cultura e lazer, além da
educação formal, que deve ser de 4 horas por dia”, diz Barreto. Ele
defende que, assim como nas escolas não se usa a força, mas sim o
diálogo e outros mecanismos de mediação de conflitos baseados em
educação, também não deve ocorrer nas unidades.
De acordo com a
justificativa do PL, os agentes executores de medida socioeducativa
trabalham de forma desprotegida. “Em muitas ocasiões, tratando com
adolescentes mais perigosos que certos delinquentes adultos, referidos
profissionais ficam reféns da proibição de uso de armas que lhes
protejam e às demais pessoas que convivem nos estabelecimentos de
internação”, diz. Além da questão interna, acrescenta que o agente, “não
podendo portar arma por vedação legal, igualmente não pode adquirir
arma para sua defesa extramuros devido à parca remuneração, que é regra.
Não fosse a remuneração, ainda há a política governamental no sentido
de restringir a concessão de porte à maioria dos cidadãos”.
Atualmente,
as possíveis formas de abordagens de situações de conflitos estão
estabelecidas no documento Parâmetros da Segurança no Atendimento
Socioeducativo, o qual dispõe que “em todo centro de privação de
liberdade de jovens deve ser proibido o porte ou a utilização de armas
por funcionário”. O documento detalha práticas mediativas e
restaurativas tidas como estratégicas para a vida segura e protegida na
comunidade socioeducativa, que envolve os adolescentes e também os
profissionais e as famílias.
Baixa letalidade
O
uso de armas de eletrochoque e outras de imobilização temporária é
abordado pela Resolução n° 6 do Conselho Nacional de Direitos Humanos
(CNDH), que trata da garantia de direitos e da aplicação do princípio da
não violência no contexto de manifestações e eventos públicos, bem como
na execução de mandados judiciais de manutenção e reintegração de
posse.
No documento, o Conselho não utiliza a expressão “não
letais”, mas sim “baixa letalidade”, já que esse tipo de arma pode levar
à morte em algumas situações, como no caso de pessoas que tenham
problemas no coração.
A resolução determina que “não deverão, em
nenhuma hipótese, ser utilizadas por agentes do poder público armas
contra crianças, adolescentes, gestantes, pessoas com deficiência e
idosos” e que “o uso de armas de baixa letalidade somente é aceitável
quando comprovadamente necessário para resguardar a integridade física
do agente do poder público ou de terceiros, ou em situações extremas em
que o suso da força é comprovadamente o único meio possível de conter
ações violentas”. As informações são da Agência Brasil.